Dia da Mulher Sambista: música como lugar de luta e resistência

“A mulher no samba tem seu valor / como qualquer pagodeiro, sambista de nascimento / que chega com seu instrumento e com respeito para tocar, / cantar, compor e inspirar toda uma geração.”

Uma música que poderia muito bem ser um manifesto. Mulheres no Samba, composta e cantada por Roberta Gomes, sambista paulistana com quase 30 anos de carreira, vai direto ao ponto. Uma mulher pode ocupar o lugar que quiser no samba e não ser apenas “passista e inspiração”.

“Quando chegamos em uma roda de samba, a maioria são homens. E eles têm essa coisa de pensar que a gente nunca vai lá cantar, compor, tocar. Mesmo sabendo que sou sambista, por exemplo, se eu chegar numa roda de samba e falar que tenho músicas próprias, sempre há uma reticência. Acham que a música deve ser uma parceria com algum outro homem. Por isso faço questão de gravar minhas músicas nos meus discos. Mesmo que Já tive parcerias maravilhosas com homens, nunca coloquei essas músicas em disco”, diz Roberta Gomes.

Rio de Janeiro (RJ) 13/04/2024 - Personagem Roberta Gomes - Dia da Mulher Sambista: a música como lugar de luta e resistência.  Data homenageia Dona Ivone Lara, um dos maiores nomes do samba do país — Foto: Roberta Gomes/Divulgação
Rio de Janeiro (RJ) 13/04/2024 - Personagem Roberta Gomes - Dia da Mulher Sambista: a música como lugar de luta e resistência.  Data homenageia Dona Ivone Lara, um dos maiores nomes do samba do país — Foto: Roberta Gomes/Divulgação

Roberta Gomes: nascida no meio do samba, primeiro tentou seguir outros caminhos – Foto: Roberta Gomes/Divulgação

Nascida no berço do samba, com familiares e amigos ligados ao estilo musical, Roberta primeiro tentou seguir outros caminhos, cantando pop, MPB, jazz e black soul. Mas um dia ela entendeu que não tinha como fugir do samba. Ela já lançou dois álbuns: em 2013, Meu lugar e, em 2021, No Caminho do Samba, apenas com músicas próprias. Como compositora escreveu canções para Diogo Nogueira, Flávio Renegado e Clube do Balanço.

“Fui prejudicado durante muitos anos pela minha mãe e pela minha família, que tinham medo que eu construísse uma carreira como sambista. Minha mãe tinha medo que eu não conseguisse pagar minhas contas. é com muita força e esforço que as mulheres têm que se colocar como profissionais em todas as áreas, porque senão nunca sairemos do mesmo lugar”, afirma Roberta.

Dia da Mulher Sambista

Para relembrar histórias de resistência e luta dentro do universo do samba, o governo federal sancionou, na semana passada, uma lei que instituiu o Dia da Mulher Sambista, comemorado sempre no dia 13 de abril. Data que também homenageia o nascimento de Dona Ivone Lara, cantora, compositora e instrumentista. Falecendo em 2018, deixou um legado como um dos maiores nomes do samba do país. Ela foi exemplo de resistência e luta para romper restrições sexistas, como ser a primeira mulher a escrever um samba-enredo, em 1965, para a escola Império Serrano: As cinco bolas da história do Rio.

“Dona Ivone começou a compor por volta dos 10 anos. E aos 30 precisava levar do primo para a roda os sambas, como se fossem os sambas dele. um samba. Dona Ivone não foi submissa nem aceitou o sistema. Ela usou diferentes estratégias para quebrar as restrições. Primeiro, as músicas precisavam fazer sucesso, para depois ela poder ser reconhecida como sua compositora”, diz o pesquisador e jornalista Leonardo Bruno, autor do livro A Canção das Rainhassobre a história das mulheres no samba.

Rio de Janeiro (RJ) 13/04/2024 - Personagem Leonardo Bruno - Dia da Mulher Sambista: a música como lugar de luta e resistência.  Data homenageia Dona Ivone Lara, um dos maiores nomes do samba do país — Foto: Leonardo Bruno/Divulgação
Rio de Janeiro (RJ) 13/04/2024 - Personagem Leonardo Bruno - Dia da Mulher Sambista: a música como lugar de luta e resistência.  Data homenageia Dona Ivone Lara, um dos maiores nomes do samba do país — Foto: Leonardo Bruno/Divulgação

Jornalista Leonardo Bruno, autor do livro O Canto de Rainhas, sobre a história da mulher no samba Foto: Leonardo Bruno/Divulgação

Hoje (13) é de comemorações e homenagens. O grupo Flor do Samba, formado apenas por mulheres, comandará uma roda de samba em Santa Tereza, às 17h deste sábado, tocando apenas músicas de Dona Ivone Lara. Uma das integrantes, a instrumentista, arranjadora e cantora Manoela Marinho, afirma que a data ajuda a reforçar que as mulheres precisam ter mais protagonismo no samba. Ela lista alguns exemplos sexistas, como o fato de poucos homens frequentarem círculos femininos.

“É uma violência muito sutil. Quando é uma mulher tocando, primeiro ela precisa chegar lá matando. Uma das coisas mais cruéis e difíceis para uma mulher instrumentista de samba é ter a possibilidade de errar, de construir conhecimento, aprender como os homens têm Eles vão às rodas, testam, acertam, erram”, diz Manoela Marinho. “Outra coisa comum é reduzir a mulher à aparência. Ela tem que ser bonita e gostosa para as portas se abrirem mais. Essa é uma exigência muito forte para as mulheres”, afirma Manoela Marinho.

Além de Manoela, o grupo também conta com Eliza Pragana e Luciana Jablonski. A Flor do Samba surgiu em 2017 a partir de outro movimento de samba, denominado Primavera das Mulheres, que reunia artistas de diversas expressões artísticas e com posicionamentos feministas, antirracistas e em defesa dos direitos da população LGBTQIA+. E manteve esses princípios até hoje.

“É através dessa atuação no samba que conseguimos criar algum movimento ativista. Mas isso precisa acontecer de forma mais ampla na sociedade. E acho que, aos poucos, essas questões estão sendo mais faladas, vistas e transformadas”, afirma Manuela.

Rio de Janeiro (RJ) 13/04/2024 - Flor do Samba - Dia da Mulher Sambista: a música como lugar de luta e resistência.  Data homenageia Dona Ivone Lara, um dos maiores nomes do samba do país — Foto: Flor do Samba/Divulgação
Rio de Janeiro (RJ) 13/04/2024 - Flor do Samba - Dia da Mulher Sambista: a música como lugar de luta e resistência.  Data homenageia Dona Ivone Lara, um dos maiores nomes do samba do país — Foto: Flor do Samba/Divulgação

Grupo Flor do Samba – Dia da Mulher Sambista: a música como lugar de luta e resistência. Fotografia: Flor do Samba/Divulgação

História dos sambistas

Não é possível falar da história do samba, sem mencionar o papel desempenhado pelas mulheres. Um dos grupos por trás do samba são as tias baianas, que vieram de comunidades de terreiro, de confrarias religiosas, e ajudaram a construir a cultura popular urbana. Mas muitos desses nomes ainda são pouco conhecidos.

“Existem muitas mulheres no mundo do samba e perdemos seus nomes por causa do machismo. Muito se fala sobre Tia Ciata, mas ainda estamos buscando mais informações sobre ela. Ximbuca, Tia Sadata, que foram essenciais para o samba na virada do século XIX? Essas histórias se perderam e precisamos resgatá-las”, argumenta Maíra de Deus Brito, professora e doutora em Direitos Humanos, que pesquisa samba.

Este silenciamento das histórias das mulheres ainda repercute hoje. No livro Canto de Rainhas, o jornalista Leonardo Bruno aborda histórias de ícones como Alcione, Beth Carvalho, Clara Nunes, Elza Soares, Clementina de Jesus, Leci Brandão, Elizeth Cardoso, Teresa Cristina, Mart’nália, Mariene de Castro, entre outros . Ele conta que todos que conseguiu entrevistar demonstravam algum tipo de medo de se apresentarem como sambistas, pois essa identidade sempre esteve muito ligada aos homens.

“Se você olhar o lugar das tias baianas, elas ficam presas nesses lugares que as mulheres podem ocupar. Elas podem ter funções maternas, funções de alimentação, de serem musas inspiradoras e objetos sexuais, e acolhedoras”, afirma Leonardo. “Mas essas tias baianas também eram sambistas. Há registros de que praticavam algumas artes do samba. Ou tocavam, ou cantavam, ou dançavam. Tia Ciata, por exemplo, entrou para a história como a mulher que abriu o terreiro para receber sambistas. E ela era muito mais que isso, tocava violão e cantava versos também.”

Rio de Janeiro (RJ) 13/04/2024 - Personagem Maíra Brito - Dia da Mulher Sambista: a música como lugar de luta e resistência.  Data homenageia Dona Ivone Lara, um dos maiores nomes do samba do país — Foto: Janine Moraes/Divulgação
Rio de Janeiro (RJ) 13/04/2024 - Personagem Maíra Brito - Dia da Mulher Sambista: a música como lugar de luta e resistência.  Data homenageia Dona Ivone Lara, um dos maiores nomes do samba do país — Foto: Janine Moraes/Divulgação

Maíra Brito: Foto: Janine Moraes/Divulgação – Janine Moraes/Divulgação

E quando o problema é ainda mais grave? Exemplo de letra de samba que defende explicitamente a violência contra a mulher. O samba Amor do Malandro, de 1929, traz o verso “Se ele bate em você é porque gosta de você. Bater em alguém que você não gosta, nunca vi.” Portela tem um samba-enredo de 1932, Vá o melhor que puder, com a frase: “Lá vem ela chorando. O que ela quer? Não é golpe, eu já dei!”. Em 1952, Moreira da Silva cantou: “Isso não está certo, bater em mulher que não é sua”. Em 1997, Zeca Pagodinho lançou Cinto amarelocom versos como “Mas se ela vacilar, vou puni-la. Vou dar-lhe uma chave de braço. Quebre cinco dentes e quatro costelas.”

“Muita gente vai usar o argumento de que Fulano foi um homem da sua época, para justificar alguns sambas que têm letras machistas. que precisamos continuar reproduzindo essas letras que falam de violência. O samba é muito generoso. Podemos conseguir outras letras de samba que exaltem o amor, a justiça, a igualdade, em vez de conseguirmos letras que reproduzam a violência”, diz Maíra.

Movimento musical e político

Quando um sambista entra em cena, nunca é só música e festa. Cada letra, acorde ou melodia tem dimensões políticas. Por isso, o Movimento de Mulheres Sambistas trabalha desde 2018 para divulgar artistas brasileiros. Naquele ano, foi organizada uma apresentação com mais de 100 mulheres na Cinelândia, com o objetivo de pressionar para o dia das sambistas.

O evento foi um sucesso e o grupo decidiu organizar outros projetos, como rodas de samba, assistência social, cursos de música e produção fonográfica, auxílio para ingresso de músicos no mercado de trabalho profissional e até um seminário, como o que está marcado para junho. , que falará sobre o papel das sambistas na cadeia produtiva musical.

Rio de Janeiro (RJ) 13/04/2024 - Personagem Patrícia Gomes - Movimento Mulheres Sambistas - Dia da Mulher Sambista: a música como lugar de luta e resistência.  Data homenageia Dona Ivone Lara, um dos maiores nomes do samba do país Foto: Patrícia Gomes/Arquivo Pessoal
Rio de Janeiro (RJ) 13/04/2024 - Personagem Patrícia Gomes - Movimento Mulheres Sambistas - Dia da Mulher Sambista: a música como lugar de luta e resistência.  Data homenageia Dona Ivone Lara, um dos maiores nomes do samba do país Foto: Patrícia Gomes/Arquivo Pessoal

Patrícia Gomes – Movimento Mulheres Sambistas. Arquivo pessoal – Patrícia Gomes

“Se posso apontar qual é a função do nosso movimento para a sociedade neste momento é: formação musical, nortear as políticas públicas e fazer essa conexão com as esferas pública e privada. mercado. A força artística existe, mas é uma das coisas, não é o foco principal”, explica Patrícia.

Neste objetivo, um dos caminhos é valorizar e iluminar trajetórias artísticas femininas e diferentes talentos.

“Precisamos continuar essa luta, para que as mulheres possam efetivamente se tornar protagonistas do conhecimento, do saber, do poder artístico criativo. Temos mulheres fantásticas fazendo coisas fantásticas. famosa, mas para por aí. Os principais lugares do mainstream são ocupados por homens. Mas tem muita mulher boa. Só falta ouvir”, diz Patrícia.

2024-04-13 18:57:00